terça-feira, 15 de agosto de 2006

Carta ao Zé da Praia *

* – Texto publicado originalmente no Boletim Mensal «Os Belenenses» de Maio de 1946. Do arquivo de Pedro Patrão.


Do ilustre escritor teatral e nosso consócio Capitão Almeida Amaral recebemos a carta que publicamos abaixo, dirigida a um nosso consócio já um pouco avançado na idade mas que recorda com saudade a sua origem: a praia.

Leiam, pois, com muita atenção, tanta como a que o Zé há-de ter ao recordar os velhos tempos em que depreciativamente o tratavam a ele e aos seus camaradas de clube, de rapazes da praia.

Bons tempos . . .



Meu caro Zé da Praia


Sei que estás doente e venho trazer-te duas palavras de conforto. Não vale nada mas sabem bem...

Muito tens tu sofrido, meu velho! ... Quem se admira que tu estejas doente? ... Só se forem aqueles que não te conhecem e não te compreendem. Aqueles que não sabem o que tens trabalhado para enfim chegares a ser legalmente (porque o resto...) o número um de Portugal, nestas andanças da bola... Aqueles que são também doentes por «outrém»... Aqueles que não sabem que o azar é mais difícil de vencer que os desafios...

Só esses meu velho Zé da Praia, é que não admiram a tua doença magnífica...

Parece de mau gosto escrever a um doente para confortá-lo e apelidar de magnífica a doença... Mas é assim mesmo, Zé da Praia, e que cada vez sejas mais doente é o que de todo o coração te desejo...

Se tu não fosses doente nada tinhas conseguido... São os teus gritos de sofrimento, os teus esgares de dôr, a febre alta que manténs, o desassossego que manifestas que te levaram a campeão...

Se tu fosses são como um pero, equilibrado, sem reacções, calado, de temperatura normal, estavas desgraçado da vida...

Mantem-te doente, cada vez mais doente e nunca morrerás...

Eu assisti à leitura da tua análise de sangue depois do desafio com o Benfica que decidiu o campeonato.

Lembras-te? Foste conduzido ao hospital quase sem dares acordo de ti, exausto, pálido, doentíssimo...

Não te esqueceu ainda decerto o que dizia o papelinho do analista que transcrevo abaixo:

Análise de sangue do Zé da Praia

Qualidade – Belenenses – fortemente positivo
Côr – Azul
+ + + + + (Cinco cruzes... de Cristo)
Glóbulos vermelhos – nada

Ora depois desta lindíssima análise diz-me lá, meu velho Zé da Praia, se não vale a pena ser doente...

Esperando que a tua febre aumente, que o teu sofrimento seja cada vez mais insuportável com vista à taça... de remédio que ainda tens de tomar, sou teu admirador e grande amigo.


Almeida Amaral


Post-Scriptum: Imaginar o resultado actual das análises ao sangue do «Zé da Praia» seria algo de assustador...